Visitar as diversas tradições musicais portuguesas, desenvolvidas no contexto das festas da natividade cristã, é descobrir um acontecimento vincadamente diferente daquele que vemos representado no espaço massmediático. Nas tradições portuguesas, encontramos o que poderíamos apelidar de «mística do sul». Os imaginários e as narrativas centram-se na figura do Menino Jesus, na Sagrada Família, nos Pastores e nos chamados Reis Magos. Esta figuração, materializada nos presépios, permite uma fácil identificação entre a história sagrada e a experiência social, e fornece o material simbólico para a celebração da vida, do futuro, da família e do mistério crente de um «Deus humanado» (tal como alguma literatura oral portuguesa recita).
A partir do século XVIII, começou a desenvolver-se a prática de representação da narrativa cristã do Natal em figurações diversas, para além da simples exibição do Menino Jesus no Altar. É neste contexto que se divulgou a prática de montagem de presépios com figuras diversas, miniaturizando a própria sociedade setecentista – à economia anterior sucede a proliferação figurativa, que chegará até aos nossos dias, em que a Sagrada Família se veste das mais variadas culturas. Os «figuristas» da Provença alimentarão este circuito da miniaturização figurada dos mistérios cristãos, movimento que virá a conhecer outros centros produtivos, incluindo o território nacional. O mercado destas figuras religiosas tornou-se tão importante que, em 1803, se realizou em Marselha a feira dos «Santons», reunindo «figuristas» dos principais centros produtivos: Marselha, Nice e Aubagne. Curiosamente, a Revolução Francesa apadrinhou o presépio, na medida em que ele podia apontar para uma outra sociedade, não a dos privilégios, mas a dos «sans-culottes» – a sociedade que caminhava para o presépio era dos «populares» e não a dos antigos privilegiados. O presépio entregue à expressividade religiosa popular estava do lado da luta contra os privilégios eclesiásticos, conventuais e senhoriais.
O Algarve, mercê do seu isolamento, conservou a tradição medieval de armar o presépio com o Menino Jesus num altar. A atividade produtiva centrou-se, por isso, na imagem do Deus Menino. Santa Catarina de Fonte do Bispo tornou-se o maior centro de «pinta-santos». A figura algarvia aproxima-se das figuras similares, em cera, da Provença – o Menino está de pé, colocado em cima de uma pequeno pedestal, com a mão direita levantada (o algarvio gosta de lhe colocar uma ramalhete de flores azuis); a outra mão tem um mundo pintado de azul.
As crenças que se exprimem na sintaxe festiva do Natal expõem uma religiosidade de índole doméstica, atualizadora de uma linhagem crente cujo lugar de identificação é a família. O Natal carrega os significados da religião do «lar». A miniaturização da história santa e a humanização do divino são as operações simbólicas mais determinantes nesta transação entre o religioso universalista e administrado e o religioso doméstico transmitido. Num quadro de socialidades organizadas segundo o modo da tradição, a comunidade aldeã prolonga as solidariedades familiares primárias.
Raízes, talvez mais remotas, podem encontrar-se, também, nas regiões insulares. O Natal madeirense concentra a memória de um passado marcado pela luta pela domesticação do habitat natural, para se tornasse viável a sobrevivência social. Tais circunstâncias permitiram o desenvolvimento de laços de base e solidariedades interclassistas. É possível, hoje, descobrir uma inesperada proximidade entre as práticas tradicionais madeirenses e o que se descreve na criação de Gil Vicente, como o «Auto da Visitação» e o «Auto Pastoril Castelhano». Em ambos os testemunhos, os pastores são protagonistas da ação natalícia. Mesmo nada tendo, não querem visitar o Menino de mãos vazias. São eles os agentes da festa, reunidos em caminho até ao adro da igreja, com os seus instrumentos musicais – machetes, rajões, braguinhas, rebeca e gaita –, sem esquecer o assobio para o Menino Jesus.
Para além destas formas de aculturação dos ritos católicos, persiste um dos traços mais identificadores das crenças e práticas natalícias: a miniaturização do nascimento do Deus infante. Multiplicam-se as «lapinhas» e as «escadinhas», presépios decorados com elementos vegetais característicos da Madeira, numa organização piramidal cujo cume é o Deus-criança, fonte das bênçãos procuradas. A partir do século XIX, desenvolveu-se uma prática paralela, o presépio de rochinha, que exibe mais ainda os traços da orologia e da flora da ilha.
Na música da natividade, recolhida etnograficamente ou recriada por vários compositores portugueses, podemos encontrar alguma coisa deste Natal ao Sul – miniatural, à escala do humano.
Alfredo Teixeira
Sem comentários:
Enviar um comentário