Visitar as diversas tradições musicais portuguesas,
desenvolvidas no contexto das festas da natividade cristã, é descobrir um Natal
vincadamente diferente daquele que vemos representado na cena mediática. Nas
tradições portuguesas, encontramos o que se poderia apelidar de «mística do
sul». Os imaginários e as narrativas centram-se na figura do Menino Jesus, na
Sagrada Família, nos Pastores e nos chamados Reis Magos. Esta figuração,
materializada nos presépios, permite uma fácil identificação entre a história
sagrada e a experiência social, e fornece o material simbólico para a
celebração da vida, do futuro, da família e do mistério crente de um «Deus
humanado». Este traço particular do cristianismo, a humanização de Deus,
favoreceu uma permanente aculturação, permitindo que as representações do
divino facilmente se ancorassem na escala do humano – a «humanização do divino»
favorece novas formas de aliança entre a história santa e o drama humano, da
dor à alegria mais expressiva.
Os cantos da Natividade dão corpo a
uma cultura que olha a história e o cosmos como lugares de hospitalidade para
Deus – o canto de embalo do Menino é talvez a figura mais eloquente. Na
espiritualidade destes cantos, narra-se a entrada de Deus na história humana,
sem aparato, em silêncio, à margem da cidade, com protagonistas inesperados. Da
linguagem do Deus absoluto, passamos à imagem do Deus frágil – o Natal
transforma as linguagens sobre Deus. Na música da natividade, recolhida
etnograficamente ou recriada por vários compositores portugueses, podemos
encontrar alguma coisa deste Natal ao sul – miniatural, porque à escala do
humano.
O exemplar que escolhi para esta
rubrica é um testemunho marcante desta mística do embalo de Deus. A canção, de
recorte silábico, faz parte do arquivo de Giacometti e Lopes Graça. Recolhida
em Paradela, em 1960, pertencendo ao vasto reportório do poeta e cantador
mirandês Francisco Domingues, a canção amplia um motivo muito disseminado no
embalo popular: «Maria lavava, José estendia» (distribuição de tarefas pouco habitual
no espaço doméstico camponês, na primeira metade do século XX), descrição do prosaico que aqui se deixa
penetrar pelo maravilhoso («Ó bento airoso, mistério divino», «É que’as vossas
verdades me matam com dor»). Eurico Carrapatoso integrou uma recriação deste
embalo no seu ciclo «Natal profano», estreado em Curitiba, no Brasil, em
outubro de 1997, pelo Coro de Câmara de Lisboa, dirigido por Teresita Gutierrez
Marques – ao mesmo agrupamento vocal pertence a primeira gravação em CD (1998).
Nesta gravação, os intérpretes sublinham de forma muito vincada a alternância
da divisão binária e ternária, quase dançante, da melodia. Na gravação de 2011, pelo Coro Gulbenkian, com a direção de Jorge Matta, sublinha-se com mais
evidência o legato indicado pelo
compositor, em detrimento daquela evidência rítmica. Todo este ciclo coral, «Natal
profano», foi integrado, sob a forma de tropo numa das obras mais celebradas do
Eurico Carrapatoso: o «Magnificat em talha dourada». Aí a obra ganha uma
amplitude diferente, com a presença de uma voz de soprano solo. Em «Natal
profano», a canção é recriada para coro de vozes masculinas (a 4), num espaço
sonoro de intimidade e serenidade serrana. O resultado transporta-nos para uma
geografia climática. Esta é, a meu ver, uma das características idiomáticas do
trabalho do Eurico Carrapatoso sobre música tradicional: ao espaço-tempo sonoro
corresponde, com muita evidência, uma materialidade visual. Seja a brandura do
monte alentejano ou o ímpeto da serrania transmontana.
Os recursos usados primam pela transparência
(renuncia-se a qualquer pantomima composicional). O primeiro Tenor traz-nos o
canto. O segundo Tenor redobra a melodia, com um recorte próximo de formas
harmónicas populares (lembrando o gymel).
O segundo Baixo é o protagonista de uma subtil exploração das ambiguidades
modais deste canto de embalo. Ao primeiro Baixo cabe, em boa parte da obra, a
sustentação de uma nota pedal interior, que aprofunda a nossa experiência do
tempo. Esta prática pode evocar sedimentos diversos: seja o arquétipo das
sonoridades de instrumentos tradicionais, como a sanfona, onde o voo melódico
se lança sobre bordões sustentados; seja o apelo a processos de improvisação religiosa
e litúrgica, onde a entoação melódica se desenha sobre um eixo sonoro imóvel,
criando um tempo extático, favorável à contemplação (recordo, na música
bizantina, a prática do ison). A memória
litúrgica irrompe, aliás, de forma explícita na linha do segundo Tenor, quando
o choro do menino se desdobra num delicado «Puer [natus est nobis]», evocando
o introito da missa do dia de Natal, na liturgia romana (é necessária uma
audição atenta para descobrir esta subtilidade). A imbricação de materiais com
origens diversas é um dos processos mais valorizados pelo ofício composicional
do Eurico Carrapatoso – destaco aqui a composição de sequências em que
materiais litúrgicos e outros, com origem na piedade popular, se aproximam em
sintaxes novas.
O canto, na secção central da obra, adensa-se:
«Calai meu Menino, calai meu amor, é que’as Vossas verdades me matam com dor».
Modulante, instável, o canto expõe-se de forma coral, em austera homofonia,
exprimindo uma tensão frequente nos cantos de embalo. Por vezes, esta poesia
oral fala do canto das mães como substituto do choro. A maternidade como dor é
um tema recorrente, com uma particular transcrição na narrativa cristã, uma vez
que a mãe que embala e lava no rio é também a mãe dolorosa do filho crucificado.
Coro de Câmara de Lisboa, dir. Teresita Marques
Coro e Ensemble instrumental Olisipo | dir. Armando Possante
Ensemble Vox Reflexa
Improvisação de Filipe Raposo